Os balanços de casos, mortes e internações que têm inundado o noticiário todos os dias nos últimos três meses de pandemia tendem a ocultar uma característica óbvia porém fundamental da realidade brasileira: a desigualdade.
Os quase 50 mil óbitos pela Covid-19 computados no país até sexta-feira (19), claro, não se distribuem igualmente pelo enorme e diverso território em que vivemos. Longe disso, carregam um abismo social que faz o vírus ser 13 vezes mais letal no Norte do que no Sul.
Enquanto na primeira região 45,5 a cada 100 mil habitantes já morreram pela Covid-19, na segunda esse número está em 3,4 até agora. Entre os dois extremos vêm Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste, com taxas que variam de 27,8 a 5,9 respectivamente.
“Na Europa o fator determinante para as mortes foi a idade, no Brasil tem sido o endereço. Se a pandemia está matando os mais vulneráveis é porque essa vulnerabilidade vem sendo construída há décadas”, diz Jorge Abrahão, coordenador do Instituto Cidades Sustentáveis.
Os estados que sofrem com índices mais altos de mortalidade são Amazonas, Ceará, Pará, Rio de Janeiro e Pernambuco e suas respectivas capitais. Na outra ponta, com as menores taxas, estão Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul.
Para epidemiologistas e infectologistas ouvidos, as hipóteses para a discrepância passam por quatro fatores centrais: as condições de vida e moradia, o acesso a serviços de saúde, a densidade e mobilidade e, por fim, a fase atual da pandemia de cada lugar.
As condições de vida e moradia determinam o grau de exposição ao vírus. Mais de 11 milhões de brasileiros (6%) viviam em casas com mais de três pessoas por dormitório em 2018, por exemplo, e novamente Norte e Nordeste carregam os piores índices.
“O Nordeste buscou fazer o isolamento desde o início, mas é uma das regiões mais vulneráveis do país. Só conseguimos 35% de isolamento nas periferias por razões socioeconômicas, culturais, fome, desemprego”, afirma o infectologista Lula Arraes, membro do comitê científico do Consórcio Nordeste.
Já o acesso à saúde muitas vezes define quem vive e quem morre depois de pegar a doença, e ele é historicamente mais difícil também nessas duas regiões, que têm as menores taxas de leitos de UTI e profissionais de saúde por 100 mil habitantes do país.
Manaus, Fortaleza e Belém eram as piores em termos de vagas em 2019, e não à toa hoje estão entre as capitais onde o vírus é mais letal. As distâncias também são determinantes: enquanto no Sul pacientes se deslocam em média 101 km (em linha reta) por uma internação ou cirurgia, no Norte é preciso percorrer 276 km, segundo dados de 2018 do IBGE.
“O cenário na região Norte é muito desfavorável pela falta de infraestrutura hospitalar e laboratorial. De 62 municípios do Amazonas, só Manaus tem leito público de UTI e faz diagnóstico, e a situação é muito semelhante no interior do Pará, Acre, Roraima, Amapá”, pontua Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz Amazônia.
Um levantamento feito por ele mostra que, nas duas semanas mais críticas da pandemia em Manaus, só 12% das vítimas eram brancas e houve uma explosão de mortes fora das unidades de saúde. “São dois sinais muito claros de que as vítimas da Covid eram pessoas com poucos recursos”, diz.
Assusta a quantidade de óbitos por causas naturais em casa ou em via pública: na penúltima semana de abril, foram 269 mortos na capital amazonense, oito vezes mais do que no mesmo período do ano passado (33). Em Fortaleza o número subiu três vezes (de 82 para 277), segundo Orellana.
A terceira hipótese para a desigualdade na letalidade do vírus tem a ver com a densidade e as dinâmicas de deslocamento de cada região. Para o epidemiologista Diego Ricardo Xavier, pesquisador da Fiocruz fluminense, isso pode ajudar a explicar a alta mortalidade também no Rio de Janeiro, que está entre as cinco maiores taxas.
“No Rio são mais de 5.000 pessoas por km². No início da pandemia falavam que a nossa densidade demográfica era menor que a da Itália, mas estavam considerando o território da Amazônia [que é equivalente a Sul e Sudeste juntos]”, lembra.
Isso também explicaria a menor disseminação em estados como Mato Grosso do Sul, onde a doença está crescendo só agora. “A epidemia está se espalhando em diferentes velocidades e contextos. Em Campo Grande a mobilidade é completamente diferente de São Paulo e Rio, que são grandes polos com trem, metrô, ônibus, aplicativo”, complementa Orellana.
É aí que entra o último ponto, as fases da pandemia, que está passando por um processo de interiorização em todo o país. Segundo Xavier, fazer um recorte da realidade hoje de regiões que estão em momentos epidêmicos distintos pode causar certa confusão.
“Amazonas, Belém e Recife estavam com taxas muito mais altas há três semanas. Agora o Centro-Oeste, Curitiba, já estão empinando muito a curva. Floripa não teve ainda o pico grande de casos. Não quer dizer que está melhor, pode só estar em um momento diferente”, diz.
É por isso que a reabertura generalizada da economia no país preocupa os pesquisadores. “Se as capitais estão relaxando ao mesmo tempo em que os casos aumentam no interior, é provável que o sistema de saúde, que fica concentrado nas grandes cidades, não aguente as duas demandas juntas”, esclarece ele.
Fonte: Varela Notícias