Mais da metade da vida, doou pensando no amanhã. Não apenas no dela, que veio de uma família humilde e quis mudar o percurso da história, concluindo aos 22 anos a faculdade de Medicina. Também não se limitou a garantir o conforto dos filhos e netos. Incansável, ela lutava pela saúde e desenvolvimento dos pequenos futuros, das novas gerações. Pelas crianças, não sossegou nem em meio à pandemia. Pelo contrário: foi quem primeiro diagnosticou covid-19 em um recém-nascido na Paraíba, em junho. Atuando na linha de frente do combate ao inimigo invisível, salvou vidas, mas perdeu a própria. Ana Lúcia Freire Cantalice morreu aos 56 anos e, junto a outros 24 médicos da especialidade que não resistiram à doença, não está aqui hoje para celebrar mais um Dia do Pediatra.
"Pessoa única, determinada e que nasceu para servir ao próximo. Sua vida era totalmente voltada para suas conquistas e proteção da família", definiu o filho da pediatra, Italo Cantalice, no município de Campina Grande. Para a família e amigos, Ana foi vida viva por cada segundo. "Hiperatividade ou energia que irradia e agita qualquer lugar, esse é o sinônimo da nossa Ana Cantalice", homenagearam os familiares em uma declaração enviada por Italo à reportagem.
Ana morreu na quinta-feira (23), após contrair a covid-19, em João Pessoa, onde atuava como pediatra neonatologista no Instituto de Saúde Elpídio de Almeida (Isea). Mesmo fazendo parte do grupo de risco pela doença, por ser hipertensa, a médica decidiu que, mais do que nunca, não poderia se afastar das unidades hospitalares e, assim como fez durante as mais de três décadas de trajetória profissional, sentiu que precisava ajudar o próximo e militar pelo bem estar da categoria.
O que Ana queria era mais proteção. Com ajuda da nora designer, idealizou um projeto de distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) personalizados para atendimento às crianças. As "Feliz Shields", como batizou, visores personalizados com super heróis para tornar o momento mais lúdico e confortável para os meninos e meninas internados. Além do cuidado especial às crianças, poderia assim contribuir com a segurança dos trabalhadores da saúde que atuam no enfrentamento ao novo coronavírus.
"Dra. Ana era uma militante das boas causas na área de Saúde atuante e se desdobrava em cuidados especiais a seus pequenos pacientes", homenageou o prefeito de Campina Grande, Romero Rodrigues. O reconhecimento da profissional e sentimento dos amigos levou várias pessoas às ruas, para uma carreata de despedida. "Dra. Ana Lúcia destinou sua vida àquilo que fazia com mais amor, cuidar das crianças paraibanas. É com enorme saudade e tristeza que a gente se despede. Sem dúvidas, deixará uma grande lacuna para a medicina do nosso estado", afirmou a amiga e médica pediatra Socorro Martins.
Infelizmente, Ana Cantalice não pode celebrar em vida, mais uma data dedicada à área que escolheu se dedicar. "Em 27 de junho comemoramos o dia do pediatra, que é um médico imprescindível porque cuida futuro do país ao cuidar das crianças, dos adolescentes e dos pais. Certamente, sem a participação desses homens e mulheres, que hoje somam 43.699 profissionais, a história do Brasil seria diferente, com menos êxitos no enfrentamento de problemas como a poliomielite ou a desnutrição", afirma a presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Luciana Rodrigues Silva.
Atuando na linha de frente, 25 pediatras morreram em decorrência da doença, detalha Luciana. "Isso é muito doloroso porque sabemos que nem todos os lugares têm as condições de trabalho adequadas para os profissionais de saúde. Então, o momento é de homenagem, mas também precisamos refletir e pedir aos nossos gestores que ampliem a percepção de como os pediatras são importantes para orientar as famílias e que eles e todos os demais profissionais de saúde precisam ter condições de segurança para trabalhar."
De acordo com o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, 944.238 profissionais da saúde precisaram ser afastados por suspeita de contrair covid-19. Em 195.516 (20,7%) a doença já foi confirmada. As profissões de saúde com maiores registros dentre os casos confirmados foram técnicos/auxiliares de enfermagem (34,5% ), seguido dos enfermeiros (14,7%), médicos ( 11,0% ), agentes comunitários de saúde (4,7%) e recepcionistas de unidades de saúde (4,3%). Dos 1.473 casos notificados de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) hospitalizados em profissionais de saúde, 218 (14,8%) evoluíram para o óbito, a maioria (80,7%) pelo novo coronavírus.
Hoje, no Dia do Pediatra, o Correio homenageia os mais de 43 mil profissionais da área, Ana Cantalice e todos os outro 24 pediatras que perderam as vidas buscando proteger o futuro.
Fonte: Correio Braziliense
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