Ambulâncias do Samu estão levando pacientes das UPAs para os hospitais (Nara Gentil/CORREIO)
Profissionais do Samu estão com jornadas exaustivas na pandemia (Foto: Divulgação)
Toque de recolher, taxa de ocupação de leitos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) em 74%, sobrecarga no sistema privado de saúde e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) lotadas, com 63 pacientes para serem regulados em um único dia. Além desse contexto, o final de semana em Salvador teve um agravante: a alta demanda pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Em plena segunda onda da pandemia do novo coronavírus, o secretário municipal de Saúde de Salvador, Leo Prates, indicou que o Samu bateu o recorde de realizar 25 transferências das UPAs e gripários para unidades terciárias, ou seja, hospitais públicos e de campanha. A média era de 16 a 17 por dia.
“Tivemos que apoiar a rede privada e fazer o transporte de paciente. Chegamos a um número recorde de 25 transferências realizadas pelo SAMU”, afirma o secretário. Prates também relatou que o tipo de paciente que procurou o serviço mudou. “Estou bastante preocupado, a gente está vendo um perfil de pacientes diferente, são pacientes mais jovens e muitos com planos de saúde. As pessoas precisam se cuidar. Sempre disse que o sistema de saúde é único porque é um só, ou seja, se o privado colapsar, as pessoas viriam para o público, e, se o público tiver problema, teríamos que fazer requisição administrativa dos leitos do privado. Então precisamos dar as mãos porque a gente está no mesmo barco”, conta.
Na visão do secretário, a segunda onda da covid-19 está mais agressiva e muito mais rápida que a primeira. “A gente está evoluindo de forma muito rápida na ocupação de leitos de UTI e de estruturas de saúde. Por um lado, as medidas restritivas vêm pra diminuir a demanda por leitos, e, por outro lado, a gente está indo além: Salvador terá mais leitos que a primeira onda com o Hospital Salvador, são 18 leitos a mais além do que teve no auge da primeira onda”, pontua Prates. Ele também diz que os leitos de UTI não são a solução, pois há um risco de 30 a 40% a mais de chances de a pessoa vir a óbito. Ao todo, são 246 leitos para covid-19 fornecidos pela prefeitura, segundo Leo.
O tempo para regular pacientes do SAMU para uma unidade de saúde, antes da pandemia, era de, no máximo, uma hora, a depender da complexidade do procedimento. Neste final de semana, uma pessoa chegou a ficar sete horas na ambulância esperando por um leito. A média de espera agora está em torno de quatro a seis horas. “A demanda aumentou muito desde a primeira onda. De ontem para anteontem, a rede, seja pública ou privada, não tem tido disponibilidade de leitos, mesmo quem tem plano de saúde tem tido dificuldade. Tive paciente que ficou sete horas dentro da ambulância na tentativa de achar um leito disponível. Há um retardo em localizar esses leitos, principalmente da rede privada”, descreve o coordenador do SAMU, Ivan Paiva.
Profissionais sobrecarregados
Com o aumento da demanda, há uma sobrecarga também dos profissionais de saúde que atuam nessas unidades móveis. “Nossas equipes estão extremamente sobrecarregadas, não tem descanso e não tem como almoçar direito. Essa sobrecarga pode comprometer inclusive a assistência, porque aumenta a possibilidade de ter algum erro. A roupa de proteção também é um fator complicador, ainda por cima dentro de uma ambulância, porque Salvador é uma cidade quente. E é difícil achar um profissional com essa especialização, então muitos estão dobrando sua carga horária para poder atender. Quando é coisa temporária, dá para levar, mas estamos nisso há quase um ano”, relata Paiva.
Mesmo com aumento do serviço, que passou a ter 62 ambulâncias na pandemia – antes eram 41 – a rede de cobertura não é só na capital, cobre também 10 municípios da Região Metropolitana de Salvador (RMS). Com isso, os cerca de mil profissionais se revezam para dar socorro de emergência a quem tem sintomas da covid-19, fora as outras doenças que não deixaram de ocorrer, como infarto e AVC. As chamadas recebidas, de acordo com Ivan, em média 8 a 9 mil por dia, saltaram para 16 mil, quase o dobro. Em setembro, elas chegaram a ser normalizadas.
Síndrome do Burnout
O efeito colateral do aumento da carga horária tem levado muitos trabalhadores ao esgotamento extremo. Muitos chegaram até a desenvolver a “síndrome do burnout”, um distúrbio psíquico causado quando um indivíduo é levado ao limite da exaustão, normalmente relacionada ao trabalho. A médica Luana Bordoni, 31 anos, passou por isso em agosto do ano passado, quando chegou a ficar um mês sem ver o filho, por ela estar na linha de frente do combate à pandemia.
“Tive uma sonolência excessiva, dor no corpo inteiro, palpitação e aquela sensação de sufocamento, de angústia e desespero. Eu não conseguia raciocinar, fazer as atividades diárias. Era como se tivesse acabado a bateria de meu corpo, dizendo para eu desligar o interruptor e tentar descansar, ou não ia dar mais”, narra a médica. Após uma semana afastada e com medicação psiquiátrica aumentada, Luana retomou à rotina. Porém, nos últimos 15 dias, ela conta que o aumento da demanda foi absurdo.
“O fluxo de ocorrências aumentou absurdamente nos últimos 15 a 20 dias. O número de ocorrências chega a beirar a exaustão, o plantão de 24 horas está quase impossível e, quando tem suspeita de covid, tem que ir com a paramentação, com máscara, e é bem desconfortável, porque a gente sua muito. Tem sido também muito difícil regular pacientes e conseguir leitos”, afirma.
O efeito déjavu e o medo do caos da primeira onda se repetir aflige não só a médica, mas os colegas. “É um sentimento de medo muito grande e desespero de que demore mais tempo para que essa luz no fim do túnel chegue logo, porque não sei até quando a gente vai aguentar. A gente achou que iria voltar ao normal e, de repente, voltamos à estaca zero. Mas tenho muita esperança e tento me manter otimista, porque senão, a gente vai sucumbir mesmo”, desabafa Bordoni.
Com Jean Rios, 33 anos, o burnout já apareceu com outros sintomas – picos de ansiedade e amnésia - mas ele não chegou a procurar um médico para tratamento, por conta da puxada carga horária de trabalho. O médico se divide em 120 horas por semana entre SAMU, Hospital Municipal de Salvador e UPA de Itinga, em Lauro de Freitas. Sobram, então 48 horas para dormir, lazer e estudar. Há um ano, ele só vê a família por vídeo chamada pelo telefone.
Onde trabalha, ele tem notado um crescimento das síndromes gripais. “A gente vem observando que, nas últimas semanas, fugiu a ordem do normal. A UPA virou quase um covidário e o atendimento por síndrome gripais foi de quase 70% dos pacientes. No SAMU, aumentou muito a demanda, está mais alta do que a gente consegue dar respostas. Pelo que a gente tá vendo, a gravidade está bem maior que a primeira onda, com pacientes mais jovens e um acometimento mais severo da doença”, expõe o médico.
Mesmo quase sem descanso e longe da família - a mãe e a irmã são do grupo de risco – Jean não pensa duas vezes em parar de trabalhar. “A gente acaba tirando esforço de onde não tem. A gente tem um compromisso com a causa e, se não for a gente, vai ser quem? É um momento de situação calamitosa que exige esforços e força de vontade, superando o cansaço e sempre tomando muito cuidado”, descarrega Rios.
Colapso já chegou
O enfermeiro Miller Brandão, 32, afirma que, apesar de a carga horária não ter aumentado, a quantidade de trabalho nas 24 horas do plantão aumentou. "Antes, em um plantão de 24 horas, a gente trabalhava em atividade de fato 10, 12 horas e conseguia ter um momento de descanso, alimentação, para higiene pessoal. Agora não, às 8h da manhã a equipe é acionada, chega às 21h da noite na base, come do jeito que dá, vai no banheiro quando der. A exaustão está chegando porque, ou a gente tem capacidade para atender ou dá conta da transferência. A coisa é muito mais grave do que estão pintando por aí, mas quem está na ponta já sabe que está no colapso”, alerta Brandão.
A médica especializada em cirurgia e mastologia Marcela Embiruçu, 34, que atende no SAMU há mais de 10 anos, relata que nunca viu nada igual ao cenário que se desenha agora. É uma situação que não deixa nem “o leito esfriar”. “Tive que esperar ter vaga na UPA para prestar assistência a um serviço da rede particular. A gente não deixa nem esfriar o leito, rapidamente coloca outro e vai ter uma hora que não ter como, a gente tem medo de travar esse sistema e não ter para onde levar”, afirma.
Além de plantonista, Marcela também atua como chefe de plantão do SAMU a cada duas semanas. A missão é mais exaustiva nesses momentos, ainda mais quando ficou sem ver a mãe por sete meses. A avó ela já não vê há um ano. “Você sai com uma sensação de impotência, de, por mais acordada que você estava tentando ajudar, não ter sido o bastante. A gente chega do plantão com uma tristeza que não sabe nem de onde bem. Não é normal ver um sofrimento de tantas pessoas e tanta morte. Me dói como chefe do plantão ter que tomar uma postura de fazer minha equipe sangrar e trabalhar ainda mais, além da preocupação com os nossos, que não estão na lista de prioridade da vacina, ter que forçar ainda mais o isolamento na tentativa de protegê-los. Mas, o mais importante é a gente não ser indiferente com a morte do outro”, relata.
O que é o SAMU
O SAMU 192 realiza o atendimento de urgência e emergência 24h em qualquer lugar: residências, locais de trabalho e vias públicas. O socorro é feito após a chamada gratuita pelo 192.
Quando chamar o SAMU 192
- Na ocorrência de problemas cardiorrespiratórios
- Em caso de intoxicação
- Em caso de queimaduras graves
- Na ocorrência de maus tratos
- Em trabalhos de parto onde haja risco de morte da mãe ou do feto
- Em caso de tentativas de suicídio
- Em crises hipertensivas
- Quando houver acidentes/traumas com vítimas
- Em casos de afogamentos
- Em caso de choque elétrico
- Em acidentes com produtos perigosos
- Na transferência inter-hospitalar de doentes com risco de morte
Fonte: Correio
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