“Mais arrasadora do que essa situação, somente as mais de 350 mil mortes dos brasileiros”. Com estas palavras Adelmário Coelho classificou o momento vivido pelos forrozeiros na Bahia, diante da pandemia do novo coronavírus, que já se arrasta por mais de um ano e paralisa todo o setor de eventos e entretenimento até os dias de hoje.
A frase clichê de que o setor cultural foi o primeiro a parar e será o último a retomar as atividades já é uma realidade compreendida por todos, tanto artistas quanto pelo poder público, mas os trabalhadores do ramo seguem em busca de soluções, ainda que paliativas.
No caso dos forrozeiros, o drama pode ser ainda mais profundo, pois a perspectiva real é de que as festas juninas sejam canceladas pelo segundo ano consecutivo. Sem vacinação suficiente e com números de mortes e infecções ainda altos, dez prefeituras baianas já anunciaram que não realizarão os festejos, enquanto outras aguardam para bater o martelo.
O governador Rui Costa, por sua vez, também se mostrou pouco otimista com relação ao evento nos moldes convencionais em 2021, mas ainda não descartou a possibilidade da Bahia permitir festas fora de época mais adiante. “Estamos chegando no meio do mês de abril e a essa altura não vejo horizonte de possibilidade de termos a festa de São João no período tradicional da festa. Eventualmente se for fazer alguma coisa fora de época para compensar a ausência do São João pode até ser no segundo semestre. Mas agora em junho acho muito difícil. Não vai ter ambiente sanitário para isso”, justificou.
Em entrevista ao Bahia Notícias, um grupo de forrozeiros comentou o panorama do setor, falou sobre o que tem sido feito para manter viva essa expressão cultural durante a pandemia, deu sugestões para ajudar os artistas e trabalhadores envolvidos na área, além de cobrar “sensibilidade” do poder público na implementação de políticas compensatórias.
ZELITO MIRANDA
Conhecido como o “rei do forró temperado”, Zelito Miranda não tem medo de criar e se adaptar. Apesar do susto e de toda a carga negativa que a pandemia traz consigo, o artista revela que redescobriu o poder das redes, ainda que financeiramente elas não deem um retorno significativo. “O susto em 2020 foi uma coisa meio doida, porque foi abrupto, chegou em cima e a gente teve que se reinventar. E essa reinvenção aconteceu virtualmente”, conta o músico. “Foi compensatório do ponto de vista do prazer de tocar, mas não é a mesma coisa de você estar em um palco”, salienta.
Resignado sobre a impossibilidade da realização das tradicionais festas no período junino, ele revelou que pretende fazer um show de São João online. “Ano passado eu fiz algumas lives, com nome Arraiá do Rei, e eu vou repetir esse ano. Eu quero, inclusive, que isso vire um projeto virtual nosso para o mês de junho. Quando acabar tudo - com fé em Deus tudo acaba logo -, eu quero manter, porque descobri uma coisa interessante que estava alí do nosso lado, as redes sociais e a internet, que a gente usava para divulgação só”, diz o artista.
Zelito lembra que depois do primeiro baque, no ano passado, chegou a acreditar que a pandemia não se estenderia por tanto tempo, mas a esperança foi se desfazendo, ao passo que o vírus se propagava e a vacinação não. “Chegou em outubro e a gente teve aquela baixa da pandemia, até ali a gente ainda estava com uma luz no fundo do túnel que as coisas se transformariam, que a gente resgataria rapidamente essa coisa do mercado do São João. Só que chegou o Carnaval e não teve, aí o olhar já ficou mais embaçado”, relata.
Diante do cenário, em 2020 ele revela que cancelou diversos trabalhos, a exemplo do tradicional Forró do Parque, realizado há 11 anos em Salvador, e que este ano ele pretende fazer uma versão virtual no mês de junho, “só pra não passar em branco”.
Isolado em casa e na incerteza sobre o futuro, Zelito Miranda diz que não nutre mais expectativas sobre haver ou não os festejos juninos em 2021, mas destaca a decepção pela falta de apoio aos artistas, sobretudo aqueles ligados às tradições juninas. “Está havendo um grande descaso com a cultura de todos os lados. Eu não imaginei que os nossos governantes ficassem tão apáticos perante a parte cultural”, diz o músico, destacando a importância do São João, enquanto patrimônio do Nordeste e do Brasil. “Tem raiz, tem um cabedal, tem uma história pra contar. É uma festa completa, tem tudo, comida, bebida, reza, santo, novena... O ciclo junino é muito rico culturalmente”, pontua.
Ainda neste sentido, ele compreende a gravidade da pandemia e a necessidade de obedecer aos protocolos estabelecidos pela comunidade científica, mas cobra ações efetivas para apoiar os profissionais do setor. “Nós vamos torcer e pedir juízo a esses governantes, que eles deem atenção a essa questão, porque, claro e evidente, a gente não pode passar dois anos de São João sem faturamento, sem trabalhar. Tudo bem, a gente segura um ano, um ano e meio, mas acredito que ninguém aguenta mais. A real é essa, está barra pesada”, declara o forrozeiro, que admite uma solução a partir da adaptação das festas para o online. “Eu acho que tem que ter esse mundo virtual e o Estado e as prefeituras não podem mais ficar esperando para entrar nesse mundo virtual, porque é a arma que nós temos nesse momento”, afirma.
Enfático, Zelito lança questionamentos: “Esse ano o bicho já começou a pegar pra todo mundo, porque você já vai para dois anos sem faturamento. Imagine se Deus o livre essa pandemia atravessa 2022, e aí? Vai ser extinta a profissão de ator? Vai ser extinta a profissão de cantor? Vão ser extintas as profissões que mexem com plateia, com o público? É uma coisa que a gente tem que ter um pensamento, está na hora de todo mundo pensar sobre isso”.
TARGINO GONDIM
Targino Gondim, por sua vez, classificou como “aterrador” o cenário, diante do segundo ano de São João cancelado. “Existem muitos, inúmeros artistas no Brasil todo e aqui na Bahia, que já sofrem durante esse tempo todo sem nenhum pouco de receita, só pedindo ajuda e sendo ajudado de diversas formas, mas sem nenhum tipo de dignidade, sem condição de exercer seu trabalho, sua profissão. E agora com essa notícia de cancelamento de São João, isso é horrendo”, avalia o forrozeiro.
O músico conta que durante o período de “zero receita”, as transmissões online têm sido uma alternativa para continuar divulgando suas músicas. “É também uma forma de estar ajudando as pessoas com esse novo formato que se desenhou de ter que ficar mais em casa, de não poder sair, sem aglomeração. A gente vai ajudando para que as pessoas possam também sobreviver a tudo isso”, acrescenta o artista, que planeja para maio, junho e julho alguns shows virtuais com banda, para que possa criar alguma receita. Dentre os eventos online confirmados por ele estão as lives de Dia dos Namorados e de São João.
Um tanto quanto otimista, Targino diz ainda torcer para que a vacinação “venha com toda força” em 2021 e que a vida seja retomada com mais tranquilidade. “O coronavírus veio pra ficar essa certeza de que a gente precisa muito um do outro, que a gente precisa viver pensando sempre no próximo, e que a gente tem que se apegar menos à mesquinhez, a um pensamento único”, pondera.
TRIO NORDESTINO
Nem mesmo o legado de 62 anos de trabalho blindou o Trio Nordestino da crise causada pela pandemia da Covid-19. Sem poder realizar shows, o grupo tem se mantido com os frutos da longa carreira, mas ainda assim precisou apertar os cintos.
“Graças a Deus, a gente tinha outras rendas de composições, de gravações, acessos de Youtube, Spotify, e isso ajudou a gente a chegar até aqui. E a questão da nossa banda, os meninos também souberam se virar em questão de auxílio emergencial, Lei Aldir Blanc, então, claro que ficou ruim, mas deu para segurar. O impacto foi ruim, a gente teve que reduzir os custos ao mínimo possível, e não digo só com relação à banda, mas a questão familiar também. Esse ano que passou realmente foi muito difícil”, conta o empresário do grupo, Carlos Santana, conhecido como Coroneto por ser neto de Coroné, um dos fundadores do Trio Nordestino.
Na avaliação dele, a pandemia, que foi um baque na carreira do trio e chegou a atrapalhar o lançamento de um projeto em homenagem a Gilberto Gil, é o “maior acontecimento negativo na carreira de todo mundo”. Coroneto contou ainda que no início acreditou que o problema não se arrastaria por tanto tempo, mas, ao ver a segunda onda, percebeu estar equivocado. “Entrou a pandemia e a gente ficou ‘ah, daqui a pouco passa’, mas a coisa foi se agravando, e você sabe que o artista, por mais que você tenha reserva, o que tira e não repõe uma hora acaba”, pontua.
Sobre a possibilidade de, neste ano, as tradicionais festas juninas serem realizadas, ele, que já integrou o Trio Nordestino, disse não existir esperança, sobretudo por conta do processo lento de vacinação. “Então eu acho que São João mesmo, presencial, igual a gente costumava fazer, não vai ter”, opina, revelando que apesar do revés, neste ano, diferente de 2020, o Trio Nordestino tem recebido convites para fazer lives para empresas. “Então, alguma movimentação vai ter. Igual ao ano passado, que foi zerado, com certeza não fica”, revela.
“Graças a Deus, a carreira do Trio é cheia de sucessos, eu acho que não existe uma banda de forró que nunca tocou o Trio Nordestino. E isso nos dá uma bagagem musical e cultural muito grande pra que realmente aconteçam coisas bacanas com a gente. Pelo fato da gente ter 62 anos e ter prestígio no meio do forró, pra gente fica um pouco mais fácil, ou menos pior. Mas a luta é diária pra conseguir alguma coisa”, conclui Coroneto, que aposta na esperança de que a vacina chegue e em breve o grupo possa voltar a fazer o que sempre fez: “levar alegria pro povo”.
ADELMARIO COELHO
Para Adelmario Coelho, um dos principais motivos do agravamento da pandemia e a consequente crise que tem abatido o setor cultural é a má gestão do governo Bolsonaro. “Nós estamos aqui, infelizmente, por falta da liderança nacional. Podíamos estar em um outro patamar de imunização. Agora é o mundo que precisa de vacina e o Brasil imaginava que somente fosse ele que podia pegar vacina ali rapidinho. Não vai acontecer isso. São 8 bilhões de pessoas do planeta que precisam de vacina e quem se antecipou a isso, quem correu e acreditou na ciência - que deve ser por aí - evidentemente que está levando vantagem. Nós estamos vendo aí países na frente, quase que com sua população imunizada, e nós estamos chegando agora quase a 10%, com 210 milhões faltando ser vacinadas, é brincadeira isso? Então, o caminho a ser perseguido ainda é com muita luta, não tenha dúvida”, avalia o forrozeiro.
Sensibilizado com a conjuntura sanitária do país e também com a derrocada da economia criativa, ele disse a frase que abre a matéria: “Só mais arrasadora do que essa situação [dos forrozeiros], somente as mais de 350 mil mortes dos brasileiros. Com certeza é uma dor imensurável”. Segundo o músico, além de triste, o cenário de dois anos sem festas juninas é “devastador”.
Na sua visão, é compreensível o cancelamento do evento, pois defende a ciência e vê como “nenhum pouco razoável” fazer aglomerações em um momento crítico. Apesar disso, ele destaca a necessidade de viabilizar alternativas. “Já vi aqui que já temos ratificado pelos prefeitos mais de 10 cidades que já cancelaram [as festas juninas] vendo esse cenário. Isso traz uma tristeza muito grande. Compreendemos, mas, evidentemente, sentimos, porque essa decisão afeta dramaticamente toda essa população que vive essencialmente desse período. O forró, por mais que a gente tente quebrar a sazonalidade, ainda é uma festa sazonal. E as festas juninas - Santo Antônio, São Pedro e São João -, digamos assim, são o ápice da sobrevivência dos seus defensores”, pontua.
Diante da importância desta manifestação cultural, Adelmario diz torcer para que prefeitos e governador viabilizem a realização do evento, ainda que em outro momento. “Esperamos que haja essa sensibilidade da gestão pública de contemplar - pelo motivo justificado do vírus nesses dois anos nas datas tradicionais - um evento fora da época. É preciso que seja feito isso, porque imagine aí você esperar 2022 apenas pra você ter uma festa que lhe dá sustentação financeira para o ano todo, é muito complicado”, diz o músico, salientando, no entanto, que tudo seja feito de forma prudente e responsável. "Pode ter certeza que a classe forrozeira também não quer isso, quer fazer a coisa com segurança”, afirma.
“Mesmo que não seja na dimensão do mês tradicional de junho, com as três festas, que se faça alguma coisa para dar oportunidade e pelo menos um alívio nessa cadeia produtiva, seja em setembro ou outubro. Acho que nada disso vai ferir absolutamente nada. É preciso que seja feita alguma coisa e não esperar 2022, porque tem gente passando fome aí”, reitera o artista, que só em junho de 2020 precisou cancelar mais de 30 shows e atualmente vive de reservas financeiras construídas ao longo de 27 anos de carreira artística, além da poupança adquirida com o trabalho anterior no Polo Petroquímico.
Sem novas receitas, Adelmario Coelho fala da dificuldade de amparar os mais de 40 pais de família que integram sua equipe. “É muito difícil, porque onde você não irriga, a fonte seca”, diz o músico, revelando que tem feito um “esforço muito grande” para, diante do cenário, ajudar seus funcionários. “Evidentemente que fizemos ajustes, tivemos que também tirar pessoas, porque não temos de onde, financeiramente, contrapor uma normalidade. Realmente somos impactados diretamente e aí ficamos impotentes”, conta o forrozeiro, que descarta as apresentações virtuais como alternativa. “Porque as lives não nos trazem rentabilidade, eu tive que investir pra poder fazer, pra poder dialogar com meu público. É muito importante falar com eles [os fãs], mas financeiramente, pelo contrário, eu tive que bancar para que fossem viabilizadas as lives”, lamenta.
Fonte: Bahia Notícias
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