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A bandidagem dos arruaceiros bolsonaristas inconformados com o resultado das urnas tomou conta do País. Episódios de extrema violência, inclusive com mortes, vêm se multiplicando desde 30 de outubro, dia da eleição que conduziu Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a um terceiro mandato na presidência da República. O Brasil está numa encruzilhada entre a civilização e a barbárie, e o tratamento a ser dado pela Justiça aos criminosos antidemocráticos que aterrorizam quem pensa diferentemente deles definirá qual sociedade teremos. Eles precisam ser contidos — e punidos imediatamente. A profilaxia à anomia não é o dia seguinte; é sempre ontem.
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Para o cientista político Felipe Borba, coordenador do Observatório da Violência Política e Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), o que ocorre no País era “previsível” e resulta do encontro de dois discursos muito difundidos nos últimos anos: a tese da fraude no sistema eleitoral, alimentada por Jair Bolsonaro (PL), e o discurso da intolerância política, que rotula o adversário como um inimigo a ser abatido, eliminado e destruído. “Essas pessoas não admitem perder uma eleição para aqueles a quem classificam como inimigos do País”, diz Borba. “Só vejo um remédio: o Brasil precisa coibir esse tipo de discurso, o da intolerância política. É necessário rigor na hora de punir quem pratica esses atos”. Para isso, ele defende mudanças na legislação: penas mais duras para pessoas que agridem outras por motivos ideológicos. “Esse seria o caminho mais plausível para diminuir ou acabar com episódios de barbárie”. conclui ele.
Em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, uma menina de 12 anos, Luana Rafaela Oliveira Barcelos, e o advogado Pedro Henrique Dias Soares, 28, morreram depois de terem sido baleados numa comemoração da vitória de Lula. O autor dos disparos, Ruan Nilton da Luz, é apoiador de Bolsonaro. Antes do crime, passara o dia bebendo. Ele tem registro de CAC (caçador, atirador e colecionador) e estava com duas pistolas quando foi preso. Em Divinópolis, no interior do estado, um menino de seis anos foi agredido pelo policial militar reformado Marcelo Rodrigues Galvão, 55 anos. Na manhã do domingo da eleição, o homem abordou o pequeno e perguntou sobre política. O menino respondeu com um “Lula lá”. O PM da reserva externou a sua agressividade: “agarrou a criança pelo pescoço e a jogou no chão”, conforme o registro da ocorrência feito pela mãe do menino na delegacia. Em São Paulo, manifestantes bolsonaristas invadiram um ônibus com alunos secundaristas que, da janela, faziam o L de Lula. “Dois adolescentes ficaram feridos após serem agredidos”, confirmou a Secretaria de Segurança Pública. O episódio ocorreu em uma via bloqueada pelos baderneiros. Também no estado paulista, estudantes do tradicional Colégio Porto Seguro, na cidade de Valinhos, foram expulsos após criarem um grupo de WhatsApp no qual compartilhavam mensagens de cunho racista e nazista. “Somos os neonazistas do Porto”, definiu um dos participantes. “Quero que os nordestinos morram de sede”, escreveu outro.
A selvageria, diante da tímida reação das autoridades, vai crescendo. Na cidade catarinense de Rio do Sul, bolsonaristas que bloqueavam a BR-470 em frente a uma loja da Havan atacaram com barras de ferro agentes da Polícia Rodoviária Federal que tentavam liberar a pista. Dois policiais ficaram feridos. Também na região Sul, no município gaúcho de Casca, seguidores fanáticos e lunáticos do capitão sugeriram que os comerciantes locais que não votaram em Bolsonaro identificassem seus estabelecimentos comerciais com a estrela vermelha do PT. Na década de 1930, na então Alemanha nazista, comerciantes judeus eram obrigados a pregar na porta de suas lojas a estrela de Davi, símbolo do judaísmo. Era como entregar-se ao carrasco, e é isso o que agora se repete no Brasil: o monstro do nazifascismo emerge da lagoa de lodo.
O advogado criminalista e cientista político Fernando Fernandes ressalta a importância de se punir exemplarmente esses criminosos. Ele defende o aperfeiçoamento da Lei de Defesa do Estado Democrático e do conjunto normativo que define os crimes de ódio, para inclusão da motivação política como qualificadora de tipos penais. “Não há na Lei de Defesa do Estado Democrático a qualificação da motivação política”, explica. “Mas a gente precisa entender que a Constituição prevê que os crimes políticos são de competência da Justiça Federal”. A Lei de Defesa do Estado Democrático foi criada em substituição à antiga Lei de Segurança Nacional (LSN), que durante a ditadura militar era utilizada para reprimir quem se opunha ao regime. Talvez por excesso de zelo e pela memória de um passado sombrio, a nova lei não menciona a motivação política como qualificadora de crimes.
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Ódio e violência
“Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões?” A reflexão de Machado de Assis no conto Elogio da Vaidade, de 1878, é lembrada pelo jurista e professor Celso Lafer, que foi aluno da pensadora Hannah Arendt — e propagador, no Brasil, das ideias dessa filósofa política alemã de origem judaica. O conjunto da obra de Arendt é referência mundial nos estudos sobre a origem do totalitarismo. Em 1961, ela cobriu, para a revista The New Yorker, o julgamento do nazista Adolf Eichmann, apontado como arquiteto do Holocausto. O trabalho resultou no livro Eichmann em Jerusalém, no qual desenvolveu o conceito de “banalidade do mal”.
“O ódio de não respeitar coisa nenhuma em nosso País polarizado tem se traduzido na violência das manifestações do pós-eleição de Lula”, diz Celso Lafer, ressaltando que o processo eleitoral obedeceu as regras do jogo democrático. “A violência, como ensina Hannah Arendt, destrói o poder da vigência de uma comunidade política e de suas instituições, que se veem comprometidas quando a ação transforma o público das praças e das ruas, e o privado das famílias e dos próximos, numa relação de amigo e inimigo”, diz ele. “E essa transformação é um mal na acepção de Hannah Arendt”. De acordo com Lafer, “não é o contraponto da profundidade do bem”, mas sim “o supérfluo das rasas dimensões dos ressentimentos e das emoções de um fungo contagioso que se alastra na superfície, desagregador do potencial da convivência coletiva”. Conter os selvagens, portanto, é fundamental para que o País se mantenha sob a égide dos valores civilizatórios — e sobreviva ao mal.
Fonte: Istoé
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